Um dos locutores que povoou sempre a boa memória da Emissora Nacional foi D. João da Câmara. O “Dom” devia-se ao facto de ser aristocrata. Numa fotografia, vemo-lo em reportagem no cais de Alcântara na receção de embaixada cultural ao Brasil, vinda no navio Serpa Pinto. Embora sem precisar a data da fotografia, imagino-a à volta de 1954. A multidão à espera do navio usava chapéu (nos homens), adereço muito utilizado. O locutor vestia fato, gravata e lenço no bolso e usava luvas, com o microfone na mão para a reportagem, numa pose de homem nobre e antigo. O navio, inaugurado em 1914 ao serviço da Inglaterra, passou para a Companhia Colonial de Navegação, que o usou até ao abate em 1955. O navio de passageiros realizou, durante a II Guerra Mundial, viagens transatlânticas entre Lisboa, Nova Iorque e Rio de Janeiro, levando, entre outros, judeus em fuga do nazismo. O regresso do navio seria a chegada de grupo de estudantes da universidade de Coimbra que tinham buscado no Brasil vestígios da cultura portuguesa.
Em 1970, D. João da Câmara reformava-se da Emissora Nacional (entrara em 1938), mas continuaria a trabalhar no Diário Popular, onde colaborava havia muito. Na rádio, e apesar de não tão popular como Artur Agostinho e Fernando Pessa nas reportagens de exterior, como primeiro apresentador do programa Serão para Trabalhadores, ele ficou fundamentalmente conhecido pela ligação à música séria (clássica) no Programa 2. Ele foi um dos dois primeiros locutores de 1ª classe na Emissora Nacional, a par de Francisco Igrejas Caeiro. Cantor lírico amador, apresentou o único espetáculo de Maria Callas em Portugal, em 1958.
Ele foi mestre para muitas locutoras entradas na Emissora Nacional. Em entrevista, Maria Júlia Guerra, que trocara a Rádio Renascença pela Emissora Nacional, foi colocada no Programa 2, frequentou o Instituto Alemão para aprender a fonética da língua de muitos dos compositores, maestros e títulos de obras apresentadas na estação, acompanhou D. João da Câmara na locução das transmissões de ópera do teatro S. Carlos, ficando até a substituí-lo. Para poder relatar adequadamente a transmissão, ela ia assistir à antestreia para saber se havia alterações, cortes ou encurtamentos de cenas ou quadros, cronometrando o tempo dos atos e o tempo dos intervalos e fazendo entrevistas. Já Maria Dinorah entrou como locutora estagiária, tendo feito uma prova com D. João da Câmara, que lhe disse ter voz muito bonita, pelo que não devia ter receio de falar ao microfone. Ele ajudou-a muito, era uma espécie de dicionário de música. Outras locutoras acompanharam-no, como Julieta Nascimento e Maria Leonor Magro, aqui em programas como O Gosto pela Música. Julieta Nascimento, que gostava muito de música clássica, ficou com o lugar dele: “não é possível dizer isto, porque o lugar dele é inocupável – mas na verdade fui eu que lhe sucedi na transmissão da ópera. Eu sou uma louca por ópera. Antes, acompanhei-o muitas vezes, servia de assessora nas pequenas coisas”. Uma revista daria conta desse modo de locução:
“dava-lhe uma densidade monumental quando cada um deles vinha à Antena, o Moreira da Câmara, o D. João da Câmara, a Maria Leonor, o Nuno Fradique, o Armando Marques Ferreira… Vozes extraordinárias que só por si são sistemas de apelo absolutamente únicos! […] Há artistas que no palco, uma vez se abrem as luzes, ficam mais bonitas, mais altas, mais comunicativas, não é? A rádio tem isso: abre-se o microfone e elas ficam de uma cordialidade”[1].
[1] José Nuno Martins, em Mário Figueiredo, Relatório do Provedor do Ouvinte 2010, p. 78.
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